Como imortalizar seus amigos exige a paciência que não temos
Em que a gente pensa a perda de memória coletiva como estratégia para a criação de um original hegemônico
Como alguns de vocês sabem, estou frequentando uma galeria para conversar sobre minhas experiências como autor e pesquisador enquanto também tenho a oportunidade de ouvir novamente, após anos distante, algumas das pessoas que mais admiro no mundo, aquelas que me causam constantemente ondas de intensidade de paixão. Tem sido uma experiência revigorante, mas também cansativa e confusa, provavelmente porque para a construção desse projeto de narrativas que provoca reencontros nem sempre tão confortáveis foi necessário passar por mais de dez anos de convivência e compartilhamento de vulnerabilidades - uma história de amor, ódio, intimidade e revolta.
Para mim, muita coisa aconteceu em 2016, quando comecei a participar de coletivos esportivo-culturais LGBTQIA+ . Estava começando a me entender enquanto dissidente de gênero e procurava pessoas com histórias semelhantes as minhas, ansiosas por encontrar um espaço de acolhimento em meio a tantas violências do cotidiano. Comecei indo a encontros de um coletivo que jogava queimada no Largo da Batata e logo expandi minha busca para outros lugares motivado por questionamentos referentes à ocupação de espaço público na cidade de São Paulo. Ainda assim, mesmo fazendo novos amigos, sentia falta de ver pessoas mais parecidas comigo. Em 2017 entrei na faculdade e os textos e discussões nos encontros do meu grupo de pesquisa me fizeram pensar na possibilidade de investigação acadêmica em torno da pergunta que ocupava minha cabeça há meses: quais são as demandas identitárias em disputa nos coletivos LGBTQIA+ e quais as estratégias utilizadas para com-viver? (Como a gente faz funcionar mesmo brigando e se odiando de vez em quando??????)
O percurso de pesquisa não resultou em uma resposta definitiva ou satisfatória, talvez porque estivéssemos em uma contexto de implantação de políticas identitárias centradas no essencialismo estratégico, termo que Spivak usa para definir um conjunto de práticas adotadas por grupos minorizados na obtenção de direitos, as quais se centralizam em movimentações políticas focadas na naturalização e homogeneização das identidades. Enquanto eu tentava me nomear sem grandes anseios pela linearidade, as instituições ao meu redor também tentavam me dar nome e me inserir em categorias fixas, rígidas e arbitrariamente válidas, motivadas pela esterilização da minha potência de vida e pelo lucro que a assimilação poderia gerar. Usei muitas palavras para dizer: estavam tentando capitalizar o meu corpo de uma forma limpinha para não incomodar mais ninguém com gritos irritantes e repetitivos sobre não querer morrer aos 20 anos. Foi um momento político importante para o surgimento de diversas discussões e conquistas legais, porém que grande CHATICE NORMALIZANTE. Percebe-se aqui que ainda não estava feliz.
Carreguei minhas insatisfações acumuladas para as entrevistas que fiz com membros de coletivos que entraram para o meu primeiro projeto de iniciação científica e foi em uma dessas conversas que fiz um grande amigo. Nessa época, além de dissidente de gênero, também estava descobrindo que (pasmem) eu não era uma pessoa branca e que minha descendência leste-asiática gerava questões na construção da minha subjetividade. Olhando tudo isso agora, parece um grande absurdo lembrar que houve uma época de descobertas sobre marcadores sociais que hoje são óbvios. E é mais absurdo ainda pensar que, apesar de óbvio, alguns pontos ainda precisam ser reforçados em um ciclo eterno de reivindicação coletiva.
Esse meu amigo me levou para um coletivo voltado para discussões interseccionais sobre ser LGBTQIA+ e ter descendência asiática no Brasil, o que me permitiu conhecer pesquisadores sensacionais que hoje tenho a felicidade de partilhar mais do que PDFs de livro no drive. Naquela época não parecia muito, mas ontem, após passarmos fotos dos momentos em que nos juntamos para construir novos projetos, dividir ideias, desejos e frustrações e brigar porque cada um tinha um desejo de futuro diferente para si e para todos, me emocionei em ver que fizemos - e aguentamos - muito e ainda fomos simpáticos. Foi um momento que me lembrou um dos artigos que mais gostei de ler na vida: As políticas do arquivo vivo, de Sam Bourcier. Nele, são contrapostos o arquivo normativo com seus ideais hegemônicos e coloniais e o arquivo-máquina criado para manter viva a história das multidões subalternizadas (oi, Preciado rs) e aproximar pessoas e corpos de temporalidades e espaços que não estão no passado, mas sim no presente e no futuro. Quando a gente pensa em museu, pensa em gente morta e enterrada e praticamente esquecida. Mas quando a gente pensa em arquivo vivo, a gente lembra dos nossos amigos.
E aqui quero dizer amigo enquanto alguém que com suas autoinvestigações e experiências gera uma ampliação de acervos de narrativas e performances, não apenas pautadas na escrita estática e normativa (que tem seu valor, nós sabemos), mas também nas performances, conversas, encontros, que se criam com as repetições e cruzamentos de jornadas de vida. O arquivo se mantém vivo com a multiplicação de reações e interações. Nós nos mantemos vivos mostrando que a incompletude das nossas histórias tem um projeto político perverso por trás, mas que aprendemos a utilizar a ficção em nossos esboços cartográficos que circulam e recirculam por aí.
Ontem, durante a mesa, falei sobre dois filósofos que eram muito próximos e de como a amizade dos dois interferia na elaboração de seus livros e, principalmente, quando um morreu e o outro começou a escrever suas ideias de mundo como se fosse uma carta para seu amigo que já não podia mais lhe ouvir. Chorei pensando que é isso que eu quero para nós (porém com todo mundo vivo e feliz), que eu quero contar sobre aquilo que imagino e critico como se fossem cartas para essas pessoas que vi ontem e anteontem e nos outros dias também, sem me envergonhar dos afetos tão interditados na bipolítica de corpos que muitas vezes não são considerados tão corpos assim. Mas que além do desejo por ver com meus olhinhos a concretização de sonhos daqueles que têm os abraços mais quentinhos do mundo, também espero que quem está chegando agora com seu grupo se lembre que outras pessoas já olharam umas para as outras e falaram “eu também já pensei, senti e vivi isso antes!”. Afinal, não é apenas referência aquele professor que nasceu em 1935 e escreveu o livro Orientalismo e que todo mundo cita como se fosse a Bíblia. Na verdade, a maioria de nós mal chegou aos 30 e já escrevemos umas paradas bem legais que mais gente deveria ler.